A CONSTITUCIONAL DISCRIMINAÇÃO ENTRE IRMÃOS GERMANOS E UNILATERAIS NA SUCESSÃO DOS COLATERAIS

 

Inacio de Carvalho Neto*

 

 

O art. 1.614 do Código Civil de 1916, que dizia que, “concorrendo à herança do falecido irmãos bilaterais com irmãos unilaterais, cada um destes herdará metade do que cada um daqueles herdar”, suscitou dúvida de constitucionalidade entre alguns autores, especialmente após a Constituição de 1988, cujo art. 227, § 6º., proclamou que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Autores houve que pretendiam não ter sido aquele dispositivo recepcionado pela Carta Constitucional[1].

 

Tendo agora tal dispositivo sido repetido no art. 1.841 do novo Código, o que deveria ser mais um indicativo de sua constitucionalidade, surgem autores pretendendo taxar tal dispositivo de inconstitucional. Neste sentido, fazendo indevida confusão com a igualdade entre os filhos estabelecida no art. 227, § 6º., da Constituição Federal, Cláudio GRANDE JÚNIOR e Eduardo de Oliveira LEITE taxam a regra de inconstitucional[2]. Sem razão, contudo, data venia.

 

A regra constitucional supostamente ferida estabelece igualdade entre os filhos, nas relações de paternidade-filiação, não aos irmãos entre si[3]. Não se impede, assim, que se distinga a sucessão dos colaterais. Inconstitucional seria, v.g., a regra que determinasse que filhos legítimos herdassem o dobro dos ilegítimos. Não é este o caso.

 

Em segundo lugar, a distinção em questão não é arbitrária. Trata desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Se há duplo laço sangüíneo (pai e mãe) a ligar os irmãos, nada mais justo que recebam o dobro do que cabe ao irmão ligado por laço simples (pai ou mãe).

 

Em terceiro lugar, a inconstitucionalidade não se presume; só pode ser declarada quando for flagrante a ofensa à Constituição. Neste sentido a precisa lição de COOLEY:

“É um dever de justo respeito à sabedoria, à integridade e ao patriotismo do corpo legislativo pelo qual passou uma lei, presumir a favor da sua validade, até que a violação do Código fundamental seja provada de maneira que não reste a menor dúvida razoável” [4].

 

Observe-se ainda que este dispositivo é repetido na legislação de diversos países, como o Código francês (art. 752[5]), o italiano (art. 570[6]), o português (art. 2.146[7]), o espanhol (art. 949[8]), o mexicano (art. 1.631[9]) e o argentino (art. 3.586[10]).

 

Na boa doutrina é pacífico o entendimento de que os dispositivos são absolutamente conformes à Constituição Federal de 1988, seja expressamente, como fazem alguns autores[11], seja implicitamente, como outros, que simplesmente nem tratam especificamente da constitucionalidade do dispositivo[12]. E não há qualquer “silêncio assustador” na omissão, como pretendeu Cláudio GRANDE JÚNIOR[13]; é que se trata de constitucionalidade tão clara (ou, em outros termos, de alegação de inconstitucionalidade tão bizantina) que entendeu-se não valer sequer a pena tentar comprovar a constitucionalidade do dispositivo.

 

O suposto problema da adoção, citado pelo autor, é, mais uma vez, fruto de confusão com a relação paternidade-filiação: a igualdade entre os filhos adotivos e naturais, na Constituição Federal, é na relação paternidade-filiação. Se alguém morre deixando como herdeiros três irmãos, um bilateral, um unilateral e um adotivo, no exemplo figurado pelo autor[14], a sucessão dependerá de ser o adotivo bilateral ou unilateral, ou seja, se foi ele adotado por ambos os pais do de cujus ou por apenas um deles.

 

Assim, se o adotivo tiver sido adotado por ambos os pais do de cujus, será irmão bilateral deste, herdando cota em dobro, igual à do seu irmão natural bilateral (a herança será dividida, neste caso, em cinco partes, uma para o irmão natural unilateral, duas para o adotado e duas para o natural bilateral); se o adotivo tiver sido adotado apenas por um dos pais do de cujus, será irmão unilateral deste, herdando pela metade, assim como seu irmão natural unilateral (neste caso, a herança será divida em quatro partes, uma para o adotado, uma para o irmão natural unilateral e as duas restantes para o irmão bilateral).

 

Conclui-se, portanto, não haver qualquer inconstitucionalidade na regra do art. 1.841 do novo Código Civil (e, por extensão, no art. 1.843, § 2º., que trata da mesma forma os sobrinhos bilaterais e unilaterais), sendo fruto de erro tal alegação.

 

 

Referências:

 

CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil: direito das sucessões. 2. ed. Cord. Everaldo CAMBLER. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, v. 6.

CARVALHO NETO, Inacio de; FUGIE, Érika Harumi. Novo Código Civil comparado e comentado: direito das sucessões. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2003.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6.

GOMES, Orlando. Sucessões. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Sinopses jurídicas: direito das sucessões. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 4.

GRANDE JÚNIOR, Cláudio. A inconstitucional discriminação entre irmãos germanos e unilaterais na sucessão dos colaterais. In: O Estado do Paraná. Curitiba, 14/dez./2003. Caderno Direito e Justiça.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil: do direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 20.

LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil: do direito das sucessões. 3. ed. Coord. Sálvio de Figueiredo TEIXEIRA. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 21.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das sucessões. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 6.

PACHECO, José da Silva. Inventários e partilhas na sucessão legítima e testamentária. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito das sucessões. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 6.

SANTOS, Ulderico Pires dos. Sucessão hereditária. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Atlas, 2001, v. 6.

WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.



* Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em Direito pela Unipar. Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá. Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo-USP. Professor Titular de Direito Civil da Faculdade Curitiba, Professor de Direito Civil da Escola do Ministério Público e da Escola da Magistratura do Paraná. Promotor de Justiça no Paraná. Autor de diversos livros jurídicos, e de artigos publicados em diversas revistas jurídicas. E-mail do autor: inacio@inaciocarvalho.com.br.

[1] Assim, v.g., SANTOS, Ulderico Pires dos. Sucessão hereditária. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 12.

[2] GRANDE JÚNIOR, Cláudio. A inconstitucional discriminação entre irmãos germanos e unilaterais na sucessão dos colaterais. In: O Estado do Paraná. Curitiba, 14/dez./2003. Caderno Direito e Justiça, p. 5; LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil: do direito das sucessões. 3. ed. Coord. Sálvio de Figueiredo TEIXEIRA. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 21, p. 250-253.

[3] Não se nega, como pretende GRANDE JÚNIOR, Cláudio (Op. cit., p. 5), que há parentesco entre os irmãos, parentesco este que gera direitos. Mas não necessariamente direitos iguais entre quaisquer irmãos, como pretende o articulista. A previsão constitucional da igualdade entre filhos não se estende aos irmãos.

[4] COOLEY. Apud MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 308.

[5] “Article 752: Le partage de la moitié ou des trois quarts dévolus aux frères ou soeurs, aux termes de l'article précédent, s'opère entre eux par égales portions, s'ils sont tous du même lit; s'ils sont de lits différents, la division se fait par moitié entre les deux lignes paternelle et maternelle du défunt; les germains prennent part dans les deux lignes, et les utérins ou consanguins chacun dans leur ligne seulement: s'il n'y a de frères ou soeurs
que d'un côté, ils succèdent à la totalité, à l'exclusion de tous autres parents de l'autre ligne”
.

[6] “570. Sucessione dei fratelli e delle sorelle. ...I fratelli e le sorelle unilaterali conseguono però la metà della quota che conseguono i germani”.

[7] “Artigo 2146º. [Irmãos germanos e unilaterais] Concorrendo à sucessão irmãos germanos e irmãos consanguíneos ou uterinos, o quinhão de cada um dos irmãos germanos, ou dos descendentes que os representem, é igual ao dobro do quinhão de cada um dos outros”.

[8] “Art. 949. Si concurrieren hermanos de padre y madre com medio hermanos, aquéllos tomarán doble porción que éstos en la herencia”.

[9] “Articulo 1631. Si concurren hermanos con medios hermanos, aquellos heredaran doble porcion que estos”.

[10] “Art. 3.586. El medio hermano em concurrencia com hermanos de padre y madre, hereda la mitad de lo que correspnde a éstos”.

[11] Assim: CARVALHO NETO, Inacio de; FUGIE, Érika Harumi. Novo Código Civil comparado e comentado: direito das sucessões. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2003, comentários ao art. 1.841, p. 85.

[12] Neste sentido: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil: do direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 20, p. 242-243; VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Atlas, 2001, v. 6, p. 95; WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 73; CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil: direito das sucessões. 2. ed. Cord. Everaldo CAMBLER. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, v. 6, p. 255; GOMES, Orlando. Sucessões. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 58; PACHECO, José da Silva. Inventários e partilhas na sucessão legítima e testamentária. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 275; MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das sucessões. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 6, p. 77-78; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito das sucessões. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 6, p. 112; DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6, p. 110-111; GONÇALVES, Carlos Roberto. Sinopses jurídicas: direito das sucessões. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 4, p. 33-34.

[13] GRANDE JÚNIOR, Cláudio. Op. cit., p. 5.

[14] GRANDE JÚNIOR, Cláudio. Op. cit., p. 5.